A esta hora, são dúzias de pombos que esfregam as anilhas uns nos outros, dúzias de enamorados que trocam almofadas odiosas com mensagens pirosas, e dúzias de cônjuges que praguejam em surdina pelos doze dias de árduo trabalho que tiveram para pagar meia dúzia de ostras. Esta é mais uma noite do Santo que tem tanto de famoso como de dispendioso: esse tal de Valentim.
Diz-se por aí que este é o dia (convertido apenas em noite, para os “não parasitas” desta e de outras sociedades) da celebração do amor, da paixão, do enamoramento … das lamechices todas que parecem não merecer celebração em mais 364 dias de cada ano. Enfim, mas essas questões existenciais quanto à razão de ser de um dia – e apenas um – que se destine a comemorar um sentimento tão equiparável a outros tantos trezentos e tal … já não são para este Valentim. É que já são 12 os que conto desde o primeiro que de alguma forma celebrei … e já deu para perceber que a cada ano tenho uma resposta diferente para essas mesmas questões. Portanto, hoje decidi que este será mais um Valentim vivido de forma diferente: neste escrevo! Escrevo, não sobre o que é este dia, mas sim, sobre o que foram os doze dias 14 de Fevereiro que já espreito por cima do ombro.
2000
Ano do fim-do-Mundo. Ano de descobertas. Ano de paixão. Nada podia ser deixado para depois. Um primeiro São Valentim celebrado no seio de uma pureza quase a ser quebrada pela paixão mais assolapada e inesperada de uma amizade transformada. Foi um Valentim by the book, com postalinhos, ursinhos de peluche (que a minha memória ainda desenha na forma de um lobo castanho), beijinhos, abracinhos e tudo o que demais eram “inhos”. Uma paixão em contida fúria, a antever o desabrochar da luxúria. Foi fofinho.
2001
Ano da ansiedade. Afinal o Mundo não tinha acabado, mas tinha adoecido e já se notavam sintomas de alerta. Um perfeccionismo que encaminhava um percurso de formação para um abismo de tensão. Uma doença grave na família, como razão de ser para toda e qualquer quezília. Uma morte anunciada, sem tempo para me sentir perdoada. A minha família adoecia, mas o meu amor só crescia. Um Valentim agarrado com unhas e dentes à minha tábua de salvação … meu, já, amor de perdição. Embalado por “The Corrs” e pela melodia das desculpas, foi mais um by the book, mas já não com o mesmo look. Aqui, já cada discussão não continha a nossa fúria, nem cada reconciliação a nossa luxúria. Foi intenso.
2002
Ano do desespero. O Mundo continuava no mesmo sítio, as doenças tinham sarado e a morte já o tinha levado. A família ainda esboçava pouca vitalidade, quando o meu amor entra em crise de identidade. Foi um Valentim de Carnaval, mascarado de amor e paixão, num fundo em paz de podridão. Não havia mais tábuas para ninguém, mas por esta altura nós buscávamos uma salvação. Era uma celebração já com alguma história, e foi à memória que apelei para salvar o dia. Um elaborado e muito dedicado álbum de recordações, encheu os nossos corpos de emoções. Na paixão, como na formação, o perfeccionismo e o empenho foram premiados por mérito. Mas, … Foi o último.
2003
Ano da loucura. Para cada lado que me virava procurava-me a mim. Perdida na desilusão da traição, dava migalhas a uma paixão e afastava-me da Razão. Cada dia tinha o tempero de um novo acto de desespero. Tudo me conduzia ao precipício, mas eu ainda seguia de olhos abertos. Vi-o aproximar-se muito … ainda hesitei … mas decidi dar um passo atrás. Foi um Valentim em standbye. O curso estava parado, o pai mal curado e o coração muito magoado. Escondia-me por detrás de mil actividades de uma “parasita” que nunca soube ser. E atrás dessas cortinas, estive a um passo de enlouquecer. Foi triste.
2004
Ano da procura. A racionalidade voltava a cada dia, trazendo consigo muita rebeldia. Descobri-me aventureira, lutadora e uma enfermeira promissora. Reerguera-me sózinha e corria cada vez para mais longe do precipício. Não corria em fuga nem por medo, corria na procura do meu próprio segredo. Foi um Valentim de antecipação e motivação. Tinha corrido ferozmente para longe do precipício e ganhava segurança a cada passo. Sentia já o romper das asas, e planeava o caminho de volta ao ponto de partida. Voltaria em corrida ao tal precipício. Correria com leveza e beleza. Daria mais que um passo em frente. Iria voar. Um voo demorado, para longe dos outros e para dentro de mim. Foi único.
2005
Ano do equilíbrio. Regressada e renovada, tinha surpreendido tudo e todos. Segura de mim e dos meus objectivos, corri decidida atrás deles. Os dias tinham mais horas, as noites menos temores; o corpo tinha mais forças, e o coração muitos amores. Sentia luz dentro de mim, e sabia que brilhava por onde me movia. Flirt para aqui, flirt para ali, decidia que queria um espaço só para mim! Foi um Valentim de Ipiranga. O último sob a asa da galinha Mãe e das opressões do galo Rei. Ainda não gritava, mas já antecipava liberdade. Não amava nem isso almejava. Mas o coração quase explodia de paixão: estava apaixonada pelo meu Eu! Foi rico.
2006
Ano de construção. Casa nova, amor novo, … uma grande reviravolta. A liberdade tão procurada, já surgia com novos contornos neste ano. A paixão tinha-me passado uma rasteira e o amor estava de novo à esquina. O Eu e o Meu reaprendiam a partilha. Os meus projectos já não eram obra de um só engenheiro. Eram meus, e “do vizinho”. Foi um Valentim em êxtase. Ao som de um Abrunhosa murmurado e gemido, ouvi a melodia de um “casa comigo”! Continuava de asas abertas, sentia-nos a voar … não sobrevoava o que planeara, mas estava certa de não querer pousar. Foi romântico.
2007
Ano de destruição. O compromisso anunciado já andava no anelar pendurado. O local estava marcado e o vestido comprado. Mas o que andava a ser preparado, era o prenúncio de um coração despedaçado. Nada se adivinhava, nada se previa, e com um belo amor mascarado, mais este me mentia. Foi um Valentim de concepção. No palco deste teatro, encenámos uma celebração do amor despreocupado e de um futuro muito desejado. As datas aproximavam-se, com a mesma rapidez com que o meu útero começou a crescer. Tudo estava tão perfeito, tão intocável … que o desfecho da peça foi o de um Mundo então desfeito, de uma forma absolutamente impensável. Foi só meu.
2008
Ano de decisão. Flutuava sem rumo, no rescaldo de um violento tsunami. Agarrada a uma bóia em que ninguém via salvação. Rodeei-me de mim e de muita incompreensão. Não tinha forças para explicar aos outros o que é sentir o Mundo desaparecer por debaixo dos pés. Mas por esta altura já tinha percebido, que trepei por outras pernas, para salvar as minhas. Nunca me teria previsto com tamanha certeza e firmeza, para um Valentim de completa surpresa. O mesmo espanto que semanas antes respondeu a um matinal “O que é que ainda fazes aqui?”, pousou as malas numa infundada antecipação de Valentim florido, e com um “Aqui termina tudo!” caiu ferido. Foi um Valentim servido frio. Não conheço outro mais original, uma viagem planeada para pôr fim a uma relação, depois de saber que já não seria eu a ficar mal. Foi corajoso.
2009
Ano de descoberta. Ainda no primeiro andar de uma nova construção, volto a abrir as portas do meu coração. De entre tudo o que pensava não querer, descubro-o quando nada mo fazia prever. Discute-se por aí a (in)existência do amor à primeira vista. Tenho vivido atenta a essas discussões, respeitando-as, mas nunca participando nelas. Até hoje, depois de tudo o que vivi nesse ano, continuo a não querer entrar nesses debates. Só sei, que ele apareceu, que o olhei, que fui olhada, que mesmo que não tenha resultado, enquanto durou, senti-me muito amada. Foi um Valentim virtual. Horas e horas de conversa, numa longa noite de descoberta. Mas de virtual tivemos pouco, quando tudo tudo foi tão emocional. Amor à primeira, segunda ou quinquagésima vista … pois, não sei. De curta ou de longa duração … ele há de todos. Mas que foi mais um, foi! Aquele com que mais aprendi até ao Valentim de hoje. Aquele que me fez ver que todas as pessoas aparecem na nossa vida por uma determinada razão. Todas fazem parte da nossa história, do nosso caminho … E hoje acho que já estou mais atenta ao papel de todas as que nalguma altura cruzaram ou seguiram o meu caminho. Foi delicioso.
2010
Ano de acção e introspecção. Muitas vezes fechei as portas de casa, para procurar acção pelo mundo fora. E outras tantas as encerrei, para o deixar lá fora e me encontrar “cá dentro”. Redescobri o prazer de me encontrar nas palavras e dediquei-as a todos os que achei serem merecedores delas. O Valentim foi doloroso. Mais um desafio testou a minha resistência à dor física e a recentemente reconstruída paz de espírito. Foi outro teste superado. O físico saiu mais resistente e a alma mais brilhante. O brilho da alma chegou-me às palavras … e as palavras chegaram a ti. Tu, que sabes o amigo em que te tornaste, e que compreendes a minha actualidade. Só tu e poucas pessoas mais, sabem que pelas palavras, tenho chegado às minhas definições e interpretações do que tenho e do que quero. Foi enriquecedor.
2011
Ano de escrever … e de … “deixa ver”. As palavras de hoje, são sobre o ontem … as de amanhã, já podem vir a ser sobre o hoje. Portanto, se hoje é mais um Valentim … “amanhã” escreverei sobre este!
E assim resumo 12 Dias de São Valentim, neste que foi mais um, diferente de todos os outros.
Nunca tinha escrito sobre este dia do ano. No entanto, ele tem sido muito marcante na minha última década de vida. Vivi experiências intensas e extremas em muitos deles. Todos foram originais e únicos. Mas por que é que só neste parei para escrever? Porque é que neste, aparentemente mais tranquilo que muitos outros, senti esta urgência de fazer um “balanço dos Valentins da minha vida”? … Pois, não sei …
Mas sei que, numa associação ao ditado que diz que “À dúzia sai mais barato!”, estes doze, não me custaram nada!
Feliz Dia de São Valentim!<